Violência de gênero expandida: outra internet é possível e necessária (PALESTRA)

Evento: Curta O Gênero. Fortaleza, Junho de 2017. Organizado por: Fábrica de Imagens.

Mesa 7 – VI Seminário Internacional Gênero, Cultura e Mudança. “Comunicação feminista – campos, linguagens e interfaces. Ana Veloso (UFPE), Ana Claúdia Mielke (INTerVOZES), Graciela Natansohn (UFBA). Mediação: Clarissa Carvalho (UESPI) – Caixa Cultural Fortaleza

Fonte da imagem: Licência CC A riot pin up model by Surian Soosay

Violência de gênero expandida: outra internet é possível e necessária

Por Graciela Natansohn

Durante este evento ouvimos falar muito de epistemicídios – das exclusões das mulheres, dos negros e negras, dos indígenas, das pessoas trans, dos homens cis cuja masculinidade não é hegemônica – nas diversas áreas do conhecimento. Vou me referir a um tipo de epistemicídio em particular: aquele gerado pelas exclusões no ciclo produtivo das tecnologias digitais, que incluem a internet, mas também outros dispositivos, e vou fazê-lo desde uma perspectiva tecnofeminista. Esta apresentação traz questões que foram publicadas no texto “Violencia contra las mujeres en red, vigilancia y el derecho a la privacidad”, em espanhol, publicado nos anais da ABCiber de 2016, escrito junto com Florencia Goldsman e num texto que ainda não foi publicado, escrito com Mônica Paz.

O tecnofeminismo indaga as formas pelas quais as relações sociais de gênero afetam toda a cadeia produtiva das tecnologias em geral e das TIC, em particular: a criação, o desenho, o desenvolvimento, a difusão, o uso e a apropriação de tecnologia. O tecnofeminismo considera o gênero como marcador social fundamental no desenvolvimento da Ciência e Tecnologia (C&T), o que não significa que outros marcadores sociais não sejam levados em conta. É necessária uma perspectiva interseccional para entender como as relações sociais funcionam na trama sociotécnica, para desconstruir a aliança histórica entre tecnologias, masculinidades hegemônicas e racismo.

Um dos efeitos mais conhecidos dessa aliança racial, de gênero e de classe que produz conhecimento tecnológico, é a divisória ou brecha digital. A brecha digital de gênero e raça se estende a todas as etapas geradoras de tecnologias. Homens brancos, instruídos e de países dominantes são os principais produtores de tecnologias, de hardwares e de softwares. Mulheres pobres do mundo são as que menos acesso tem a elas.

Mas vou me referir a apenas um aspecto da brecha digital no Brasil que acho importante trazer aqui, pois relaciona dois fenômenos fundamentais para uma crítica feminista antirracista à cultura digital hegemônica: a) o acesso à internet via celulares inteligentes e b) as violências de gênero. A minha proposta relaciona tipos de acesso à internet enquanto modelos de inclusão digital, com um tipo de violência de gênero baseada na vigilância exercida via celulares.

Como foi apresentado pelas colegas, no Brasil, só a metade (51%) dos domicílios tem acesso a internet (CETIC, 2015). Dados dessa mesma pesquisa demonstram que pela primeira vez, o número de brasileiros/as que acessam internet por celular é maior ao da população que acessa via computadores: 89% dos e das brasileiros/as se conectam à internet por smartphone, superando os computadores, que são usados por 65% das pessoas que se conectam. Desde 2014, o IBGE nos informa que as mulheres usam mais celulares que os homens.

O acesso via celulares se dá preferencialmente por aplicativos: cômodos, exigem competências digitais mínimas. Contudo, muitas atividades online, como trabalhar, pesquisar, estudar, são feitas menos por celular do que computador. Sabe-se que o computador é essencial para uma apropriação efetiva das TIC; o uso combinado de celular e de computador permite melhor desenvolvimento de habilidades digitais mais sofisticadas e complexas que vão além de uso de redes sociais e correios eletrônicos. O acesso via celular tem-se constituído, de fato, em “o” modelo de inclusão digital brasileiro, modelo imposto pelo mercado com anuência do Estado, que abandonou a política de extensão da banda larga no país. Trata-se de um modelo com baixíssimo potencial de produção, criação e programação de conteúdos, derivando numa inclusão digital para o consumo e não para a cidadania ou para o fortalecimento da democracia, menos ainda para superar a brecha digital de gênero e raça porque, como vimos, mulheres e pobres são os que mais acessam desse jeito.

Vale destacar que a exclusão digital é apenas um sintoma, uma manifestação do modelo androcêntrico e racista da ciência e tecnologia. As brechas não são “defeitos” do modelo senão parte constituinte desse modelo.

A segunda parte da minha exposição relaciona este modelo dominante de acesso à internet – que afeta principalmente aos pobres – em sua maioria, mulheres negras – com as violências de gênero.

Proponho que pensemos a violência contra as mulheres nos entornos digitais – via celulares, mas não só – com os dispositivos de vigilância massiva que se instituem mediante a internet, e que afetam nossa privacidade e nosso direito à intimidade. Ou seja, estou estendendo, ampliando o conceito de violência digital de gênero para fenômenos mais sutis e complexos que envolvem a coleta de dados das mulheres via aplicativos.

Quando falamos de violência de gênero na internet, pensamos naquela que está localizada num determinado espaço da internet, o das interações. Assim, vemos (e sentimos) continuamente assédios, denúncias de extorsão, ameaças, publicação de fotos e vídeos sem consentimento, revenge porn, etc. Esses fatos deram lugar a leis, como a famosa lei Carolina Diekmann, que tornou crime a invasão de aparelhos eletrônicos para obtenção de dados particulares (a atriz teve suas fotos do celular divulgadas sem permissão). Isso é, sem dúvidas, uma extensão das corriqueiras violências de gênero estendidas para os ambientes digitais. Mas há uma outra violência, mais invisível, localizada na arquitetura da rede e no modelo de negócios de internet, que é a coleta de nossos dados cada vez que acessamos a internet ou baixamos um simples app.

O uso massivo da internet via celular gerou um mercado gigante de aplicações móveis, verdadeiros “chupa-dados” associados às gigantes da internet (Facebook, Google, Yahoo), cujos termos e condições de uso exigem das usuários/as muitos mais dados que o necessário para funcionar. Não apenas via celular, obviamente. Aplicações web sugam nossos dados também.

Neste mercado em expansão se destacam apps para celulares para controlar a menstruação, a ovulação, o período fértil, o peso corporal, as medidas do corpo (cintura, peitos, quadril), supervisionar a pressão arterial, pulso, etc. Estes programas coletam dados íntimos numa escala alucinante e os sistematizam sem o nosso controle, pois não sabemos o que fazem com essas informações. Falo de app de saúde feminina, mas a coleta se faz sobre todo tipo de informação: ideológica, religiosa, cultural, da vida cotidiana, costumes e modos de consumo, etc. Essa coleta indiscriminada e com nosso consentimento não informado (pois ninguém lê os termos e a coleta funciona por default), acreditamos, constitui mais uma violência de gênero, na medida em que realizam vigilância massiva sobre os corpos das mulheres e violentam o direito humano à privacidade e intimidade.

A vigilância via rastros digitais não é uma fantasia de Black Mirror, é como funciona a internet hoje na realidade. Mas esse funcionamento não é produto de um imperativo tecnológico. A vigilância por defeito, por default, embutida nas tecnologias, é uma estratégia comercial e patriarcal para controlar e restringir direitos.

Há uma constante coleta, registro, análise e classificação de nossos rastros digitais. Os fins são diferentes: comerciais e publicitários, administrativos, por motivos de segurança, dentre outros. A vigilância existe como uma função potencial que está inscrita na própria engrenagem e arquitetura dos dispositivos. Este rastreamento via rastros digitais já está entrando timidamente, em discussão, nas esferas públicas feministas.

Podemos exemplificar este fenômeno com uma piada que está circulando em redes sociais: o cara que liga pro delivery de pizza, e os da pizzaria já sabem tudo sobre ele: não apenas que sabor de pizza que ele compra sempre, mas também como estão o colesterol e triglicérides, porque cruzaram dados da farmácia onde ele se cadastrou e sabem quando e quantas caixas de atorvastatina comprou. Então, sugerem pizza de ricota em vez de portuguesa. Ainda sabem que o cliente caminha pouco, pois pede muitos Uber por dia, sabem onde foi de férias porque receberam os dados do AirBnb, etc.

Esta vigilância a que nos referimos tem a missão fundamental de produzir conhecimentos sobre os vigiados, gerar target, perfis minuciosos de clientes. E por que estariam violando os direitos das mulheres? Por que devem ser consideradas violências? A saúde reprodutiva, para continuar com o exemplo já citado acima, sempre foi cenário privilegiado para o controle dos corpos femininos. Menstruação, concepção, parto, puerpério, hormônios, menopausa, TPM, tudo é objeto de intervenção biopolítica e biomédica.

Aqui no Brasil, as pesquisadoras do colectivo Coding Rights estão estudando as “Menstruapps”. Estas app, como falei antes, são oferecidas para controlar a ovulação, ciclo e período fértil. E, alimentadas inocentemente com nossos dados, funcionam como laboratórios para a observação de padrões fisiológicos e do comportamento feminino. Com as menstruapps, monitorar teu ciclo significa informar regularmente ao app se bebeu, fumou, tomou algum remédio, se fez sexo, se fez cocô regularmente, se teve problema de sono, como está a secreção vaginal etc. Não se espante se amanhã seu convênio médico particular decide revisar seu plano de saúde. Talvez eles já saibam da sua saúde você mais do que você mesma.

Há outros exemplos interessantes. No mercado de app também se oferece um “copinho” menstrual, o coletor de sangue menstrual, que promete um ciclo menstrual “saudável” através de uma conexão a dispositivos Android e iOS, via bluetooth. Ele permite controlar, a partir do celular, a cor do fluxo menstrual, conhecer exatamente quando temos que vaziar e voltar a colocar o copinho no canal vaginal. Outra proposta semelhante é a de uma marca de tampons que são vendidos acompanhados por um chaveiro com um chip que, combinado com o uso do celular, “avisa” sobre vazamentos ou derrames. Estão, também, sendo desenvolvidos microchips para controlar a dose de hormônio anticoncepcional. Um minichip é implantado embaixo da pele e pode ser ativado por um sinal de wifi que libera a dose de droga programada.

Estes exemplos nos interpelam: De que forma podemos garantir a segurança da administração medicamentosa à distância? Quem domina o código de programação desse dispositivo? Estamos colocando nossa vida e saúde nas mãos de terceiros (nem nós, nem nossos médicos). Todavia, há quem especule com um cenário de revenge pregnancy ou hacking ovariano, pois esses mecanismos podem ser invadidos e controlados por terceiros até com fins de vingança. Por que não? Entidades médicas vem discutindo, faz tempo, a inconveniência da informatização da história clínica dos pacientes pois a manipulação, difusão não autorizada, venda ilegal e acesso por pessoal não autorizado ferem o direito à intimidade e confidencialidade dos dados médicos.

Não só a saúde pode ser afetada pelo vazamento de dados. Também são coletados dados sobre nosso comportamento, afinidades, práticas culturais e de consumo, orientação ideológica, etc. Por isso, anonimato em internet é vital, permite a privacidade, que é uma forma de autonomia e poder. A privacidade e o anonimato empoderam. Por isso devemos discutir big data e internet das coisas desde uma perspectiva tecnofeminista antirracista e perguntarmo-nos: até onde estas tecnologias permitem às mulheres maior capacidade de agência, poder, autonomia e controle de si, dos corpos e dos intercâmbios comunicativos?

Mas nós, mulheres, amamos a internet! Nem ao paraíso, nem ao inferno. Nós, feministas, devemos considerar as tensões entre as possibilidades liberadoras da internet, em termos de autonomia, liberdade de criação e desafio aos sistemas mediáticos hegemônicos, por um lado, e as condicionantes sóciotécnicas e políticas que restringem e reorientam as possibilidades e tipos de apropriações feministas da internet.

Hoje falamos de epistemicídios, mas vou finalizar com epistemofilias: final de semana passado, em Salvador, houve a primeira hackatona feminista do governo do Estado. Participaram durante 33 horas programadoras, hackers e inventoras, com o tema ‘Respeita as Mina’. O objetivo da ação foi promover o desenvolvimento de app que contribuíssem para o fortalecimento da rede de atenção à mulher em situação de violência, oferecida pela PM mediante a Ronda Maria da Penha. Foram apresentados sete projetos pensados em espaços na web e em aplicativos de celular. A esmagadora maioria das hackers eram mulheres negras. Quem levou o prêmio foi uma equipe de três mulheres negras e um menino negro. Além de útil, o app usa tecnologias abertas, privacidade por default e mecanismos que garantem a privacidade e a não invasão de celulares pelos agressores. É uma mostra do quanto a participação de sujeitas historicamente banidas da criação científica pode vir a nos mostrar que outra internet é possível. Obrigada!

Bibliografia para consulta:

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Sobre Florencia Glodsman