Fonte imagem: blogdaboitempo.com.br
Referência: DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. S.Paulo: Boitempo, 2016 [1981]
Autora: Profa. Graciela Natansohn
Angela Davis é filósofa, professora (aposentada) de História da Consciência (Universidade de Califórnia, USA), dirigente do Partido Comunista de EEUU, ex integrante das Panteras Negras e investigadora especializada em feminismo, marxismo, abolicionismo do sistema penitenciário, teoria crítica e estudos afro-americanos.
Davis faz uma análise cruzada, interseccional e dialética da história das mulheres norte-americanas do século XIX e início do XX, analisando o lugar, as lutas e a vida das mulheres negras escravizadas, as lutas pela abolição da escravatura e pelo voto das mulheres e os/as diferentes atores/as políticos nesse jogo. Descreve como as mulheres negras, suas organizações e as das mulheres brancas, desenvolviam suas estratégias pelas suas reivindicações, às vezes coincidindo, outras em franca disputa, seja pelas formas e caminhos traçados por cada grupo, seja pelas pautas que cada uma avaliava como indispensável. A maior parte do livro gira ao redor da questão de como as estratégias das lutadoras pelo sufrágio foram assumindo em distintos momentos posições racistas ao assumir a supremacia da raça branca como ideologia geral da época. Mas não o faz apenas para apontar o racismo senão para assinalar a necessidade de uma aliança política transversal que se coloque como meta a emancipação coletiva.
A autora destaca a luta de personalidades antirracistas negras e brancas, e faz um relato detalhado das batalhas feministas de fim do século 19 e início do 20 articulando questões de gênero, classe social e raça, e argumentando sobre como cada uma dessas questões adquire dominância diferenciada em distintos momentos da luta política. O texto é um exemplo ímpar de como realizar análises interseccionais (conceito este, o de interseccionalidade, que seria cunhado mais tarde por Kimberle Crenshaw), onde nenhuma categoria de análise -sexo, raça, classe – é, a priori, mais dominante do que a outra. Contudo, convence de que a questão racial, sempre marginalizada nos debates feministas hegemônicos, ou relegada a um assunto de mulheres negras apenas, é central porque diz a respeito da constituição de uma cultura nacional (e vale pro Brasil, sem dúvida) baseada em hierarquias raciais, o que incumbe a toda a população, no presente e no futuro. Se gênero é uma categoria relacional, que não diz respeito apenas às mulheres, raça funciona do mesmo jeito, não dizendo respeito apenas de negras e negros, mas às relações de dominância entre grupos étnicos, onde a branquitude também joga o jogo da raça, e de formas muitas vezes perversas.
De forma espantosamente didática, abre seu livro com um capítulo doloroso de ler, mas indispensável para entender o que está em jogo quando se fala da necessidade de racializar o debate político num país de herança escravagista; nessa primeira parte, o relato da desumanização das pessoas escravizadas, suas lógicas de sobrevivência em meio à dor da tortura, do estupro disciplinador e do sistemático e planejado o esfacelamento das famílias negras anuncia o que anos depois muitos feminismos vem insistindo em reforçar: que a herança cultural, social e as experiências das mulheres negras neste continente em nada se parecem às da suas congêneres brancas – suas irmãs brancas, diz a bela tradução – e portanto, suas pautas e lutas políticas específicas devem ser parte da luta geral das mulheres e de todos os seres humanos que trabalham pela libertação das amarras injustas do capitalismo.
Ou em outras palavras, que a categoria “mulher” pode ser uma cilada, se despojada do seu contexto racial e de classe. Os mitos fundadores da feminilidade (delicadeza, fragilidade, instinto materno natural, dedicação aos cuidados) são, na verdade, construções políticas de um projeto capitalista que precisa da produção e reprodução (no lar) dos seres humanos para o trabalho, mediante a criação da figura da “dona de casa”, ao mesmo tempo em que cristaliza o trabalho doméstico como não produtivo e sem remuneração. Mas esse mito não se corresponde nem se aplica às mulheres negras, que durante e após a escravidão trabalharam fora de casa em todo tipo de labuta, até nas mais duras e cruéis, como lembrou Soujurner Thruth quando perguntava, reiterada e provocativamente, “e eu não sou uma mulher?”.
Mas não apenas os sofrimentos são parte deste relato; as estratégias de resistência – fugas, conspirações, sabotagens, revoltas – marcam o mapa da insubordinação negra no país. Neste sentido, o livro convida a entender melhor os chamados “feminismos negros” enquanto muito mais do que feminismos para mulheres negras. Publicado originalmente em 1981, o livro preanuncia um tipo de análise situado, contextualizado, próprio dos feminismos decoloniais que desde essa década em diante abraçam a academia e as causas das mulheres negras, as mulheres “de cor” (latinas e asiáticas) e latino-americanas, e obrigam a pensar nas colonialidades que nos conformam e nos epistemicídios que nos atravessam. Cabe pensar como dialoga este texto escrito nos 80 nos Estados Unidos da América, com a conjuntura atual brasileira, onde as políticas identitárias baseadas na luta pelo reconhecimento parecem ser o norte dos feminismos emergentes (negros, queer, trans, etc). Estes parecem ter dificuldades em dialogar com as organizações coletivas (sindicatos, partidos, grêmios, associações) que tem a luta de classes, a luta pela apropriação social da riqueza e a luta pela hegemonia política via a radical transformação social, como principal objetivo.
O capitulo 2 descreve o entrelaçamento, nas origens, entre a luta antiescravagista e a organização das mulheres brancas, que encontravam, na luta abolicionista, um espaço onde vazar suas reivindicações políticas à vez que exerciam uma praxe política negada pelo voto, praxe que seria fulcral para as lutas sufragistas que viriam década depois. Nos capítulos 3, 4 e 7 se analisam os conflitos raciais e de classe dentro do movimento sufragista das mulheres, mostrando como as pessoas brancas que tinham sido abolicionistas defendiam os capitalistas industriais e ignoravam a classe trabalhadora branca, no mesmo movimento em que apoiavam o voto das mulheres brancas. Nestes capítulos se descrevem as tensões entre feministas brancas sufragistas e lideranças negras, em relação com as classes proprietárias industriais e os interesses partidários de republicanos e democratas.
O capitulo 5 analisa o período pós-escravagista, onde as mulheres negras desenvolviam basicamente trabalho doméstico em casas de brancos e a população carcerária negra crescia, passando a formar parte de um contingente de mão de obra presidiária cujas condições de vida eram similares às da escravidão. Estas análises dão sustento às posições a favor do abolicionismo penal e contra certo punitivismo do feminismo e de alguns movimentos sociais. No capítulo 6 se mostra como a comunidade negra se mobilizou a favor da educação e nos capítulos 8 e 9 descreve a organização das mulheres negras e destaca algumas figuras como Ida Wells e Mary Terrell e as discussões e posições sobre o que chama de “branco como leite” movimento sufragista feminino.
No capítulo 10 Davis visibiliza diferentes figuras femininas relevantes, brancas e negras, do movimento comunista. No capítulo 11 desconstrói o mito do homem negro estuprador, descreve o estupro como um pretexto punitivo contra homens negros e como prática disciplinadora levada à frente pelo Estado, dando como exemplo os estupros levado a cabo pelos soldados durante a Guerra de Vietnam, como uma política não escrita mas sistemática. Nesse capítulo, tão doloroso quanto o primeiro, relata o linchamento frequente de homens negros sob a acusação de estupro, linchamentos que viraram moeda corrente, instalaram o terror entre a população negra e desafiaram a luta sexista das mulheres negras para proteger aos da sua raça. O estupro passou a ser uma arma política dos supremacistas brancos contra os negros e essa representação do “negro violador por instinto” penetrou profundamente até nos setores mais progressistas. Homens brancos estupradores eram (e são) invisíveis até para o sistema judiciário.
O capitulo 12 descreve como as políticas racistas das primeiras décadas do século XX se utilizaram da esterilização forçada para o controle da população negra, colocando novamente sob tensão os direitos reprodutivos e sexuais reclamados pelas mulheres. Por último, o capítulo 13 centra-se no trabalho doméstico, realizando um interessante apanhado histórico sobre como, em distintas sociedades e em momentos diferentes, este cumpria um papel diferenciado e particular, enquanto traz o debate contemporâneo sobre o lugar da força de trabalho doméstico na reprodução do capital, reivindicando a industrialização e profissionalização do trabalho doméstico e isentando as mulheres desse trabalho, como estratégia fundamental da libertação feminina.
Enfim, racializando o gênero e a classe de todos/as as/os atores/as em jogo, evitando determinações apriorísticas (do tipo: gênero é determinante ou raça ou classe são determinantes em qualquer circunstância histórica), Angela Davis destrincha a dialética do poder nesse período histórico, de forma detalhada e minuciosamente documentada com fontes históricas, onde é possível entender como, em conjunturas específicas, a supremacia masculinista, de classe ou a racial tomavam conta dos movimentos sociais, realizando uma verdadeira genealogia dos movimentos sociais norte-americanos envolvidos nas lutas antiescravagistas e feministas.